terça-feira, julho 24, 2007

Aprender

Já se conheciam há quase 10 anos. Durante esse tempo construíram uma amizade muito forte, alicerçada numa ligação próxima. Ele tinha um enorme grau de confiança com ela. Não tinha qualquer problema em desabafar com ela, em pedir-lhe ajuda e retribuía sempre quando podia. De facto, ele amava-a da mesma forma que se ama uma irmã. E para ele, ela era isso mesmo: como uma irmã que nunca tivera e que só não o era pelo facto por não serem do mesmo sangue mas que o era no afecto e no carinho que lhe dispensava.
Aquele era o dia da sua festa de aniversário. E, claro está, nunca lhe passou pela cabeça não estar presente nessa festa onde ela iria comemorar os seus 21 anos. Ao longo do caminho da casa dela, levando na mão direita um saco contendo a prenda que tinha escolhido para lhe dar, uma pergunta pairava na cabeça dele: "como será ele?". Este "ele" a que se referia era o novo namorado dela. Não é que ele tivesse o hábito de se meter na vida pessoal dela, apesar de ela desabafar tudo com ele; a única coisa que lhe interessava era que ela fosse feliz, fosse com quem fosse. E era um namoro que durava há 6 meses, por isso, ela já tinha tido algum tempo para ver bem a quem andava agarrada aos beijos. Seria? Mas naquele momento haviam alguns fantasmas do passado a pairar no horizonte e o que ele mais tinha medo era que esta nova paixão da sua "mana" acabasse por ser o mesmo fiasco das relações anteriores que ela tinha tido. E que belas peças tinham sido esses...
O primeiro era todo meiguinho e querido com ela. Rara era a semana em que não lhe oferecia algo como um raminho de flores ou um livro (ela gosta muito de ler). O reverso da medalha vinha para os de fora. Ciumento até dizer basta... Até as amigas dela nem podiam estar muito tempo com ela que ele ia logo atrás delas. Claro está que demorou até ela descobrir o que realmente se estava a passar; afinal de contas, com uma pessoa que é um autêntico amor, quem é que acredita que pode tratar mal os outros por... ciúmes?
O segundo não tinha problemas com potenciais "concorrentes"; o problema era a tentação irresistível como punha coisas no bolso que não eram dele. Um dia em que esteve em casa dela, até um bule de chá em porcelana que estava em cima duma mesa no hall de entrada em exposição ele levou para oferecer pelos anos da avó!
O terceiro não tinha nada destas coisas. Besta foi sim na hora de acabar com ela. Era complicado a relação ser mantida pelo facto de ela estar em Lisboa e ele em Coimbra. Mas, como se costuma dizer, quando queremos mesmo uma coisa, trabalhamos para ela, não é verdade? Até ao dia em que ela recebeu uma mensagem dele a informar que gostava mais de outra que tinha conhecido em Coimbra. No preciso dia em que faziam 4 meses.
Ele chegou a casa dela, abraçou-a como fazia sempre, cumprimentou os restantes convidados e foi-lhe apresentado o amor dela. Rapaz simpático, aparência humilde e educado. Pelo menos, assim manteve-se o resto da tarde. No entanto, às vezes ele ouvia-o a armar-se, não para outras raparigas, como se poderia julgar, mas para outros rapazes. "Sou muito bom a fazer isto", disse ele várias vezes.
Depois de se apagarem as velas e do lanche, chegou a altura do pessoal se continuar a divertir. Os pais dela tinham uma mesa de snooker. Foi então que ele disse em voz alta para quem estava à volta dele: "Sou muito bom a jogar pool. Faço umas tabelas do caraças e meto várias bolas em simultâneo". Ficou toda a gente a olhar para ele. "Alguém quer jogar comigo uma partidinha para eu mostrar os meus dotes?", perguntou ele com um ar triunfante.
"Eu jogo contigo", respondeu o "irmão" da sua namorada e aniversariante.
As outras pessoas afastaram-se da mesa e deram espaço para os dois jogadores. A abertura foi feita pelo desafiante. "Agora que já fiz a abertura, vou colocar aquelas duas bolas em simultâneo, tabelando aqui e ali", afirmou ele. A bola branca saíu fora da trajectória esperada, bateu de raspão noutra bola e bateu, sem resultado, num dos lados da mesa, terminando aí o seu caminho.
Ouviram-se vários "aahh" de espanto pela sala e olhou tudo para ele que, envergonhado e atónito, tentava disfarçar o desconforto.
Então, viraram a atenção para o outro elemento daquele jogo. Ele estava imóvel, de olhos postos na mesa. Respirou fundo e aproximou-se. Olhou para a bola branca; olhou para as restantes. Viu qual era a melhor hipótese de sucesso e bateu a bola branca nessa direcção e colocou a bola de destino no buraco mais próximo. Fez isto para todas elas, uma a uma, sem pressas, sem stress. Uma a uma, da forma mais simples e eficaz. Quando colocou a bola preta, a última de todas, olhou calmamente para o seu oponente durante algum tempo e disse:
- Compreendes porque falhaste?
Ele ficou surpreendido com a pergunta e ficou sem responder, olhando espantado.
- É importante que compreendas porque falhaste no jogo. Da mesma forma como falhaste num simples jogo de pool, também podes falhar noutros aspectos da vida e eles podem não ser tão inofensivos como um jogo de pool.
Continuou mudo e quieto.
- Sabes porque perdeste, porque erraste? Eu explico-te por quê. Quando começaste este jogo, tinhas em mente apenas e só um objectivo: exibires-te à frente de toda a gente. Quando eu comecei este jogo, tinha apenas um objectivo: meter uma bola de cada vez. E porquê? Simples, porque o objectivo do jogo é ir metendo as bolas todas e a forma mais simples, mais prática e mais eficaz é fazê-lo colocando uma de cada vez. Tu entraste pela tua imagem pessoal, eu entrei pelo jogo. E, ao contrário de ti, eu não tinha quaisquer pressões pois eu não estabeleci objectivos ao andar a enaltecer-me à frente das outras pessoas. Ninguém queria saber qual seria a minha performance, ninguém queria saber se eu ganhava ou perdia. Toda a gente tinha os olhos em ti pois tu chamaste-lhes a atenção disso. Tu estabeleceste um patamar e toda a gente queria ver-te a atingí-lo. E estavam todos a borrifar-se para o que eu seria capaz de fazer ou não. Eu não estava sob qualquer pressão.
Baixou os olhos, levantou-os de seguida e reparou que toda a gente olhava para ele. O outro continuou:
- A humildade não é um estado de espírito, é uma característica nata. Ou nascemos com ela ou morremos a tentar mostrar que a temos. Nunca mais digas que és bom a fazer algo. Os seres humanos não são bons nem maus. Há coisas que fazem com poucos erros, há outras que fazem com muitos erros. Afirmar que se é bom implica perfeição e não há nada perfeito à face da Terra. Até a matemática, a mãe de todas as ciências tem imperfeições e indeterminações.
Ele acabou de falar e guardou o taco no lugar dele. Quando acabou, um amigo dele e da "irmã" disse:
- Tu és mesmo implacável.
Ele voltou-se para ele e, com um pequeno sorriso na cara disse:
- Eu não venço os meus adversários. Apenas lhes dou algo para pensar. E aprender.