Não necessariamente
Segunda parte
O Jorge aproximou-se da porta principal da igreja e reparou que estava fechada. Lembrou-se então da porta que dava acesso à biblioteca e às salas de reunião e convívio que existiam nas traseiras. Ao mesmo tempo que ia caminhando, reparou nas luzes acesas através das janelas e na presença de alguns vultos. Com certeza que o Paulo não estava sozinho na igreja aquelas horas e devia estar acompanhado de outras pessoas.
Foi então que chegou ao pé da porta e bateu à campainha. Ouviu passos do outro lado e alguém a abrir o trinco da fechadura. Foi então que a porta se abriu e o Jorge reconheceu claramente as feições do seu velho amigo.
- Boa noite, Sr. Paulo. Cá estou eu conforme prometido.
- Jorge! Boa noite para ti também! - respondeu o Paulo com um grande sorriso na cara ao mesmo tempo que trocavam um abraço - então, estava a ver que nunca mais chegavas...
- O que queres que faça? O trânsito as estas horas ainda está infernal - respondeu o Jorge ao mesmo tempo que entrava no corredor e pendurava o casaco num cabide - e com a chuva fica tudo muito pior. Já sabes como são os condutores em Portugal.
- É verdade. Então, como foi o teu dia?
- Foi altamente surrealista. Aconteceu-me uma cena que, contada, ninguém acreditaria.
- Então, que se passou? - perguntou o Paulo com um ar enigmático.
- Já te conto. Agora, vamos lá tratar desses problemas informáticos. Que se passa com o computador?
- Está todo mamado - respondeu o Paulo enquanto abria a porta da biblioteca e deixava o Jorge passar à frente - ontem estive a trabalhar com ele na boa e hoje, quando o liguei, estava diferente. Tinha os atalhos todos alterados, não deixa aceder a nenhum programa, os menús estão todos inacessíveis e a desligar demora muito pouco tempo, como se fosse instantâneo, o que para um Windows é algo de anormal.
Entretanto, tinham entrado na biblioteca e o Jorge pode constatar quem eram as pessoas cuja sombra tinha visto pela janela ainda há pouco. Sentados à volta de uma mesa estavam o Padre Ferreira, pároco da Ajuda, o Miguel e a Diana, dois amigos do Jorge e do Paulo dos tempos do secundário que se tinham casado e moravam na Ajuda, a D. Julieta, uma senhora adorável na casa dos 60 anos, que era a responsável pela biblioteca e pelo ATL das crianças do infantário anexo à igreja e o João, outro velho amigo do Jorge e do Paulo que costumava ser animador do ATL aos fins-de-semana.
- Boa noite a todos - disse o Jorge de forma cordial ao mesmo tempo que cumprimentava cada um dos presentes pessoalmente - como estão?
- Boa noite, como vais rapaz? - respondeu o João sorrindo - tens andado desaparecido, ninguém te vê...
O Jorge soltou uma gargalhada.
- Então, deves julgar que sou como tu. Não sei se sabes mas ainda há quem tenha empregos com responsabilidade! - respondeu o Jorge piscando o olho ao mesmo tempo que apertava a mão ao Padre Ferreira e em seguida cumprimentava a D. Julieta.
- Sim, sim, és um trabalhador nato - retorquiu o João enquanto cruzava os braços em sinal de desafio.
- Sr. Padre, como vai essa saúde?
- Cá se vai andado, devagar, mas vai-se - respondeu alegremente.
- Isso é que é preciso. - O Jorge virou-se para o casal e perguntou - Então, e os pombinhos, como estão?
- Nós estamos bem, obrigado e tu, que contas? - perguntou a Diana quando trocavam um beijinho.
- O costume. Sabes como é, isto de um tipo andar numa consultora tem que se lhe diga... Sempre trabalho aos montes.
- Isso são desculpas dele. Na realidade ele faz nenhum o dia todo e depois anda-se a queixar pelos cantos! - disse o João interrompendo a conversa e piscando o olho aos outros.
- É, é mesmo assim - respondeu o Jorge sorrindo e abanando a cabeça - Então, qual é o computador que está a dar barraca? O Paulo falou-me por alto que o Windows está a comportar-se de modo estranho o que até não tem nada de estranho para um Windows mas, da forma como ele o descreveu, é mesmo anormal.
- É este aquí - disse o Paulo chegando-se para um computador de secretária - está a funcionar tal e qual como te contei.
- Deixa ver.
O Jorge sentou-se e olhou para o ecrã do monitor. De facto, havia mesmo algo que não batia certo. À primeira vista, parecia um Windows Vista perfeitamente normal mas apresentava umas diferenças. Reparava-se que no system tray, apenas estava o ícone do MSN Messenger e nos atalhos presentes no "desktop", estavam alguns que não faziam qualquer sentido num PC não ligado à Internet como o "My Network Places" que apenas aparece quando se está online. De resto, o comportamento dos menús era tal e qual o já descrito pelo Paulo: apenas o principal abria e não era se conseguia arrancar nenhum programa. Tentou ir ao "My Computer" e ver as propriedades da partição principal. Quando tentou arrancar o Scan-disk do Windows apareceu uma janela a avisar que tal operação não era possível pois estava um programa instalado que tinha essa funcionalidade específica e, como tal, tinha trancado o acesso ao Windows ao disco.
- Estava algum anti-virus instalado ou algum programa de monitorização do sistema? - perguntou o Jorge levantado a cabeça da altura do monitor e olhando para os restantes presentes.
- Tinha o Norton Anti-Virus e o Norton System Works - respondeu o Paulo fazendo um esforço para se lembrar no pormenor da versão, algo em que ele nunca reparava - e creio que era o 2007. Não, era o 2006. Pá, não tenho a certeza, era um deles, não me lembro bem de qual...
- Está bem.
O Jorge voltou a olhar para o ecrã. Tentou abrir os atalhos para umas directorias mas não conseguiu aceder aos seus conteúdos. Realmente, não havia muito mais a fazer. Nenhuma das funcionalidades do sistema operativo estava a responder e não se conseguia aceder a qualquer dos programas instalados, nem sequer ver o conteúdo do menu das aplicações.
- Bem, o que se passa com ele é bastante estranho e, francamente, não estou a ver outra solução viável que não seja formatar a partição onde está o Windows e reinstalar tudo de novo. Como os dados estão todos na partição partilhada não há qualquer problema e ficam a salvo. Eu podia tentar correr a consola de reparação que o CD de instalação do Windows tem mas acho que o resultado vai ser uma autêntica javardice. Os registo do sistema já estão todos alterados e o ou os erros que estão na origem deste problema, muito provavelmente, podem lá ficar dissimulados mas nada garante que, no futuro, isto não volte a acontecer.
- Bem - respondeu o Paulo - se é essa a melhor solução, força nisso. Tens contigo o que precisas para instalar o Windows de novo?
- Tenho. Trago sempre comigo CDs com software para várias eventualidades.
E em seguida, o Jorge abriu a sua pasta e retirou uma pequena bolsa com CDs e DVDs. Escolheu o que tinha etiquetado "Windows Vista Home" e retirou-o. Colocou-o no leitor de DVDs e reiniciou o computador. Alterou as configurações na BIOS para que o computador arrancasse do leitor de DVDs e, pouco depois, deu início ao processo de formatação da partição. Enquanto esperava que todo o processo chegasse ao fim, o Jorge chegou-se para trás na cadeira, levou a mão à testa e suspirou profundamente.
- Que tens? Pareces bastante cansado... - perguntou a Diana.
- Não é tanto cansaço, é outra coisa que me anda a pesar cá dentro - respondeu o Jorge, colocando as mão em cima da mesa.
- O que é? Problemas no trabalho? - perguntou o Miguel.
- Sim e não. Quer dizer, é no trabalho mas não directamente relacionado com ele.
- Então, que se passa rapaz? - perguntou o Paulo que entretanto tinha puxado duma cadeira e estava sentado ao lado do Jorge.
- Foi uma cena que aconteceu hoje lá no trabalho envolvendo o namorado duma amiga minha.
- E que cena é essa que te pôs com uma cara dessas? - perguntou o Miguel.
- A sério, não quero estragar a vossa noite a incomodar-vos os meus problemas - respondeu o Jorge ao mesmo tempo que a formatação do disco tinha terminado e a instalação do Windows estava no início.
- Não incomodas nada, ora essa. Então para que servem os amigos? - disse o Paulo tocando no ombro do amigo.
O Jorge olhou, primeiro para o Paulo e depois para os restantes, e sorriu.
- Bem - disse enquanto mudava a posição da cadeira, saindo da frente do computador e virando-se para todos os outros - o que aconteceu foi isto.
O Jorge contou tudo o que se tinha passado, desde o inicio, quando se reencontrou com a Andreia, passando pelo primeiro choque com o Cláudio e terminando com os acontecimentos daquele dia. Quando acabou a narrativa, imperava um silêncio na sala, como se se tratasse dum funeral e ninguém conseguisse falar sobre o que quer que fosse. O sentimento de indignação estava estampado no rosto de cada um e, por dentro, todos sentiam pena pelo Jorge.
- Francamente, não sei bem como vou resolver isto - disse o Jorge, abanando a cabeça - ela não acredita em mim. Mais, ela nem sequer me quer ouvir.
- Pois, é complicado quando a pessoa que se espera que seja imparcial não o é e pensa com o coração em vez de o fazer com a razão - afirmou o Miguel.
- Acho que não devias forçar o contacto com ela - disse a Diana - se, neste momento a rapariga não quer falar contigo, não vale a pena insistires porque o resultado que vais obter será ainda pior. Quanto mais tentas, mais ela te rejeita. Se, um dia, ela quiser falar contigo, ela fá-lo-á de livre vontade e não por tu andares atrás dela. Lembra-te que, para ela, tu és o culpado e está magoada contigo.
- Concordo, acho que devias deixar acalmar a poeira e ver o que ela vai fazer - acrescentou o Paulo.
- Vocês têm razão no que dizem, mas há outro aspecto que não pode ser esquecido. O Cláudio. Ele teve um conjunto de atitudes que me prejudicaram bastante. Além de que fez de mim parvo e divertiu-se à grande com toda esta situação. Já o estou a imaginar a rir-se de mim e da cara que fiz quando vi a fotografia dele com a cara esmurrada. Deve ter pensado: "Já me livrei deste palhaço!".
- E o que pretendes fazer em relação a isso? - perguntou a Diana.
- Fazê-lo pagar por tudo o que me fez! - respondeu o Jorge dando um salto da cadeira e avançando na direcção da Diana, abrindo os braços - não sou um otário que ando aqui à solta para ser enxovalhado e espezinhado pelos outros que fazem asneiras e não querem pagar por elas!
- Tens de ter cuidado com o que pensas - disse o Padre Ferreira - lembra-te que o ódio e a violência levam a lado nenhum, bem pelo contrário. Estás a pensar em arranjar uma luta com ele para te desforrares mas isso não é solução. Se, por esta situação, não és responsável, ao tomares a iniciativa com uma resposta violenta, estás a alinhar no jogo dele, tornas-te culpado aos olhos de todos, perdes toda a razão que tens e, mais importante que tudo, estás a baixar ao nível dele, algo que julgo não ser consistente com a tua natureza como homem e como pessoa.
- O senhor está a falar verdade - respondeu o Jorge, sentando-se novo na cadeira - mas isto não pode ficar assim. Quer dizer, quando nos fazem mal, encolhemos os ombros, viramos as costas e dizemos "As acções são dele, logo ele acabará por pagar um dia". E se esse dia nunca chegar ou chegar muito tarde quando já não fizer sentido? Assim, fui comido como parvo e não respondi.
- Sejamos sinceros. Como todo o respeito pelas suas ideias Sr. Padre, pelo que se passou, o Cláudio merecia levar uma tareia em cima. Quem tem a legitimidade para agir é quem é mais prejudicado. Só que a pessoa que foi mais prejudicada, não se apercebeu de nada e não vai tomar qualquer medida. Mas, concordo com o ponto de vista de que a violência gratuita apenas vai piorar a situação - disse o Paulo.
- Aí é que está o problema. Se eu chegar ao pé dele e lhe espetar um par de socos, embora possa, aparentemente, acertar contas entre nós os dois, fico muitíssimo mal visto pelas outras pessoas, especialmente por ela.
- Não necessariamente.
Todos olharam para quem tinha dado aquela resposta. Era o João. Desde o início da narrativa do Jorge ele permanecera em silêncio e imóvel, com uma cara muito séria, como se estivesse a pensar noutro assunto ao mesmo tempo que ouvia as palavras do amigo. E agora, dera aquela resposta.
De facto, o João estava mesmo a pensar noutra coisa. A situação descrita pelo Jorge fazia-lhe lembrar algo que lhe acontecera há oito anos atrás, ainda nos tempos do secundário.
João Emílio Fernando Bretes fora o nome que os pais lhe deram há 26 anos atrás. Um nome de recurso, diga-se já que toda a família estava convencida que era uma menina que vinha a caminho e tinham escolhido um nome a condizer: Sandra. Mas, para juntar ao facto de ter decidido nascer antes do tempo, com 8 meses de gestação, o que lhe deu o apelido de "apressado", decidiu ser um rapaz a aparecer e os pais, sem grande imaginação para uma solução de recurso, deram-lhe os nomes dos dois avôs. O João era daquelas pessoas de quem toda a gente gosta de estar ao pé. Por todas as escolas por onde passou até à faculdade e, depois, no seu emprego na Vodafone, era muito estimado por todos pois consideravam-no um bom amigo, alguém em quem se pode confiar em todos os momentos. No entanto, a vida nem sempre fora fácil. Houve alturas em que o João teve de lutar para conseguir atingir os seus objectivos e o facto de os pais serem pessoas que vieram de famílias muito simples e humildes que valorizam o esforço e a preserverança, moldaram nele um espírito muito forte de empenho e trabalho. A mãe era secretária de uma imobiliária no Lumiar e o pai era correspondente de vendas duma empresa de ferragens e materiais de construção sedeada na Baixa de Lisboa que, devido ao seu emprego, passava a maior parte da semana fora de casa, em viagem pelo norte do país em contacto com os clientes. O João sabia bem que a comida que tinha à mesa, a roupa que vestia e as demais coisas que possuía não caíam do céu. Sempre se habituou a respeitar e a fazer-se respeitado. Por isso, preferia estar rodeado de amigos que pensassem como ele e tivessem uma formação igual à dele. Mas isso não o impedia de participar em todas as brincadeiras em que os amigos se metiam, especialmente os do básico.
Os pais sempre fizeram tudo para nada lhe faltasse, especialmente a nível escolar. O João, tal como a maioria dos seus primos direitos, tinha uma boa capacidade para estudar e todas as possibilidades de tirar um curso superior e ficar bem no futuro. Sabendo disso, os pais optaram por, a seguir à conclusão da primária, o pôr numa escola particular situada nas proximidades do Estádio da Luz. Fora uma boa escolha. De facto, a mentalidade reinante nessa escola era que a formação como estudante e como pessoa era o mais importante no desenvolvimento dum jovem. Mas muito melhor que isso, foram os amigos que o João lá fez. A começar pela turma onde o colocaram. Aqueles tipos só sabiam fazer porcaria! Mas havia algo mais entre todos eles. Eles eram como uma família; não havia diferenças entre eles, apoiavam-se em todos os momentos e tiveram sempre um comportamento digno sempre que foram de viagem em representação da escola. Mas, infelizmente, houve uma alteração radical na vida do João. A empresa em que o pai trabalhava, estava a dar sinais de que ia fechar a curto prazo e, para garantir uma indemnização, o pai resolveu vir-se embora e iniciar um negócio por conta própria. Mas não foi nada fácil e houve necessidade de fazer cortes na despesa para poder compensar as alterações que advieram da mudança de emprego do pai. E uma dessas alterações foi a mudança de escola pois os pais deixaram de ter capacidade financeira para poder sustentar as mensalidades. E assim, o João transferiu-se para a Escola Secundária de Benfica onde fez os três anos do secundário. As diferenças entre as escolas eram enormes, a começar pela forma como os professores lidavam com os alunos e pelo próprio sistema da escola. A sorte do João foi que não havia rivalidade entre os alunos das duas escolas, logo a sua integração não fora difícil, bem pelo contrário. Afinal de contas, há pessoas decentes em todos os lugares e alí não era excepção. No entanto, ele não se separou dos outros amigos. Continuavam a encontrar-se como sempre e a fazer montes de coisas juntos. Como todo o empenho que punha em tudo o que faz, o João conseguiu concluir o 12º ano e entrar na Universidade Católica para o curso de Engenharia Electrotécnica, seguindo a especialização em Telecomunicações. E quando o concluiu, fez um estágio na Vodafone e por lá ficou, sendo o seu profissionalismo constantemente elogiado por todos. No entanto, nesta aparente existência digna, houve um episódio, passado no secundário, que o marcou. Episódio esse que veio de volta à sua memória ao ouvir o que se tinha passado com o Jorge.
- Que queres dizer com essa afirmação? - perguntou o Jorge, meio surpreendido.
- Estou a dizer que não é necessário que, ao optares por uma resposta "mais directa", digamos, percas a razão perante os outros, especialmente a tua amiga.
- Mas como é isso possível? Se toda a gente ver o que acontece, com muita razão que eu tenha, a imagem que fica é a de uma pessoa que agrediu outra.
- E se ninguém ver? - contrapôs o João.
Toda a gente ficou espantada com estas palavras e ficou a olhar ele.
- Tu dizes, e muito bem - disse, levantando-se da sua cadeira e pondo as mãos nos bolsos - que perderás toda a razão se te virem a bater nele. Mas e se não houver testemunhas?
- O que estás a sugerir é muito baixo - disse a Diana com uma cara de indignação.
- Antes do mais - continuou - um esclarecimento que creio ser necessário neste momento. Eu partilho, por inteiro, das ideias expressas pelo Padre Ferreira. Sou contra a violência e não julgo que ela seja a solução para problemas, sejam eles quais forem. No entanto, há alturas na vida em que somos obrigados, por motivos de força maior, a pôr de lado as nossas crenças, a nossa forma de ver as coisas e a tomar atitudes porque a isso somos obrigados.
«Tu, Jorge, estás a pagar pelas atitudes de uma pessoa que fez várias asneiras e não quer assumir a responsabilidade por elas pois ele sabe que o preço a pagar é demasiado elevado. E, como tal, para te calar e se ver livre de ti, contou a história à maneira dele e, infelizmente, foi levado a sério. Isso não significa que devas ficar quieto e parado com uma placa a dizer "otário" colada na testa e, muito menos, que não deixes de responder. A tua dignidade está em jogo e, mais que isso, uma questão entre vocês os dois sobre quem tem o direito de rebaixar quem e sair impune.
«Eu disse que não é necessário que tu percas a razão se lhe quiseres dar uma coça. Se calhar, não o devia ter feito. Mas agora, que falei, digo tudo até ao fim. Sabes qual é o princípio pelo qual funciona o sistema judicial dum estado de direito?
- É o princípio da presunção da inocência - respondeu o Jorge.
- Correcto. E o que isso quer dizer?
- Quer dizer que uma pessoa é inocente até prova em contrário.
- Correcto. Mas dito isso por outras palavras e de forma mais precisa, o que significa?
O Jorge olhou para o João e para os restantes e encolheu os ombros. Os outros também não perceberam bem onde é que o João queria chegar.
- O princípio da presunção da inocência diz claramente que uma acusação efectuada contra uma entidade por parte de outra, apenas é considerada efectiva e passível de punição adequada se essa acusação for sustentada por provas de inequívoca e inquestionável validade assegurada por uma entidade terceira totalmente inócua.
«Assim sendo, o Cláudio pode acusar-te de lhe teres batido porque ele arranjou testemunhas, falsas, mas testemunhas. Mas como é que ele o pode voltar a fazer se tu realmente lhe deres uma coça e não houver ninguém que presencie tal acto? É a palavra dele contra a tua e, segundo o princípio da presunção da inocência, não havendo testemunhas ou provas factuais que a suportem, não te pode acontecer nada apenas pela palavra dele. Tu nem precisas de negar a acusação. Basta que digas qualquer coisa do género: "Tenho nada a ver com isso". Não há provas, não há consequências.
- Mas espera aí - disse o Miguel, interrompendo a conversa - para que isso aconteça, tu estás a sugerir uma "espera". E isso não é nada dignificante.
- Depende da forma como é feita - respondeu o João - se ele apenas o fizer sozinho, sem a intervenção de terceiros, entenda-se "amigos", e lutar de forma civilizada, digamos, sem recurso a objectos de arremesso como pedras ou paus e não atingir partes mais sensíveis do corpo, como os órgãos genitais, a nuca, a base das costas, ou seja, fazendo apenas uso dos punhos e batendo onde faça mossa e dor mas onde não ponha a integridade física dele em questão, não há nada que lhe possa ser indicado como monstruoso ou, como dizes, pouco dignificante.
«Falas em "espera". Eu julgo que a melhor forma de tratar disto até seria fazê-lo em frente aos conhecidos dele. Mostrava coragem e respeito próprio. Mas isso poderia provocar outros efeitos secundários mais graves. Por exemplo, e como já foi dito, as pessoas presentes poderiam dizer, independentemente de estarem feitas com ele ou não, que se tratou de um acto de violência gratuita e isso não beneficiaria em nada a posição do Jorge. E, além disso, eles poderiam mesmo entrar na luta. Se ele o fizer sem intervenção ou testemunho de terceiros, não só restaura a posição dele como impede qualquer retaliação ou quebra de imagem perante outras pessoas.
- Tu percebes bastante disto - disse o Paulo, com ar bastante surpreendido. A resposta do João deixou toda a gente boquiaberta a olhar para ele.
- Eu sei. É que já tive necessidade de o pôr em prática.
- Estás a dizer que optaste por esta táctica de actuação no passado? - perguntou o Miguel com espanto.
- Sim. Como já disse, há alturas na vida em que somos obrigados a agir de forma diferente à nossa maneira de ser porque as circunstâncias assim o obrigam. No passado, tive um problema grave em mãos e a única forma que encontrei para resolvê-lo foi esta. A razão pela qual vocês e o resto do pessoal nunca souberam foi, primeiro, porque passou-se no secundário e, como estávamos separados, não vos chegou aos ouvidos e, segundo, porque achei que não era nada de que me orgulhasse particularmente para andar a fazer publicidade ou a gabar-me por aí. Foi algo que teve que ser feito, no momento e timing certos.
- Que problema foi esse que te atormentou a esse ponto? - perguntou o Jorge.
Toda a gente estava especada a olhar para o João. A face dele denotava um certo nervoso e apreensão por ir remexer em algo que não lhe trazia boas recordações. Ele juntou as mãos e começou a contar.
- Quando entrei para a ESB, havia uma certa hierarquia montada lá dentro que já vinha desde os tempos do 9º ano. E, como em todo o lado, havia pessoal de jeito, que gostava de ter posição mas tratava os outros com respeito e havia daqueles que adoravam maltratar os outros. E quando digo maltratar, não me refiro a violência física mas sim a atitudes discriminatórias. Gozavam-se com os que eram gordos, com os que estudavam, com os que praticavam algum tipo de desporto, com os que eram do clube diferente. Enfim, tudo servia. Um dos tipos que gostava de se armar desta forma era um caramelo chamado Gustavo Valente, uma autêntica peça. Ele praticava andebol no Sporting, andava com uma miúda do Calhariz chamada Sara, se não me engano, que andava sempre atrás dele e tinha como que uma legião de seguidores, chamemos-lhe assim, que alinhavam em todas as tretas que ele arranjava. Nunca soube bem o que ele tinha de tão especial para ter tanta gente atrás. Acho que deviam achar piada ao estilo dele: um tipo que pertencia a um grande clube, com uma miúda gira ao lado e a dar piadinhas para o ar e a achar-se muito engraçado por se meter com os outros. Ele não se meteu logo comigo. Passei todo o 10º ano com normalidade e a assistir constantemente às cenas que ele arranjava por lá com outras pessoas. No 11º ano é que as coisas mudaram. Tudo começou quando um dia ele me viu na biblioteca a ler um livro sobre a 2ª Guerra Mundial. Ora, todos vocês sabem que eu gosto muito de ler e tenho um gosto especial por história universal. Acontece que eu estava no 1º agrupamento e lá não há qualquer cadeira de História. Ele topou e meteu-se comigo. Perguntou-me se a saudação nazi servia para estudar os Maias de Português ou para calcular as equações de Matemática. Eu limitei-me a responder que estava a ler por gosto e para aprender mais umas coisas para aumentar a minha cultura geral. Ele desatou-se a rir e chamou-me "aprendiz de SS". Fiquei a ferver por dentro mas fiz acabei a fazer de conta que era nada e continuei a minha vida. O problema foi que ele fixou-me e passou a meter-se comigo todas as vezes que me via. E chamava-me todos os nomes que lhe vinham à cabeça. Um dia até me chamou "lampião da suástica", pois não era segredo para ninguém que eu tinha, e tenho, interesse pelo Benfica. Ao fim de um tempo, eu já não o suportava. E o pior nem era ele chamar-me coisas, era mesmo ver o "séquito" que vinha com ele a fazer daquilo uma autêntica paródia. O resto do pessoal dizia para eu não ligar e fazer de conta que ele não existia e seguir a minha vida com calma. Como acontece com todas as pessoas que me conhecem, sabem que sou uma pessoa correcta, sincera, honesta e simples e lá não foi diferente. Eu continuava a ler os meus livros e a manter-me no meu cantinho, sem me meter com os outros de forma incorrecta. Logo, eu tinha do meu lado toda a gente que também era gozada por ele e fazia tudo para o ignorar ao máximo. Acontece que um dia, a minha paciência esgotou-se. Foi em Maio de 1999. Eu fazia parte da equipa de voleibol, como se devem recordar, e tirámos umas fotos para serem espalhadas pela escola para anunciar os nossos jogos para que o pessoal viesse assisti-los. Era uma prática comum já que todas as outras equipas, como a de futebol e a de basquetebol, faziam também. Acontece que o Gustavo apanhou uma dessas fotos de equipa, pegou numa caneta vermelha e fez um círculo à volta da minha figura na fotografia e escreveu por cima "O filho da puta nazi da ESB. Vamos saudá-lo. Heil!" e colocou-a cá fora, pendurada numa das árvores. Eu fiquei a ferver. Eu só tinha vontade era de chegar ao pé dele e desancá-lo à pedrada, o que não era nada difícil dado que a escola estava em obras e tinham levantado a calçada para arranjos. Porém, eu tive bons amigos lá que me acalmaram os nervos. Disseram-me que não valia a pena eu arranjar molho por causa daquilo, que só os anormais é que iam na conversa dele e que todas as pessoas decentes da ESB não alinhavam naquilo. Eu acedi. Mas havia uma cena que não podia ficar impune: ele chamou-me filho da puta e isso tinha que ser resolvido. Hoje, dou graças por me terem segurado na altura porque se eu tivesse atirado alguma pedra da calçada à cabeça dele, não só me tinha lixado à grande como tinha armado uma autêntica batalha campal pois os amigos dele viriam contra mim e o resto do pessoal punha-se ao meu lado contra eles. Eu soube logo que aquilo tinha de ser resolvido a dois, sem interferências. Mas como? Foi então que eu ouvi uma conversa em casa entre os meus pais e a solução caiu mesmo à frente dos meus olhos. O meu pai falou dum tipo que tinha dado uma tareia a outro que o tinha enganado e gozado e tinham ido a tribunal mas não aconteceu nada porque não houvera testemunhas nem provas físicas que ligassem os dois homens pelo incidente. Foi então que pensei em algo semelhante. Mas não era algo que se fizesse assim, do pé para a mão. Requeria paciência, calma e estudar muito bem o Gustavo. A minha primeira preocupação era descobrir onde ele morava o que não foi nada difícil. Um dia segui-o, com os amigos dele todos atrás e fiquei a saber que ele morava num prédio situado num largo ao pé do Centro Comercial Colombo. Agora, era uma questão de saber bem o horário dele para o poder esperar numa hora e em circunstâncias que me fossem favoráveis. Descobri o horário dos treinos de andebol, as horas em que levava a namorada para casa, quando é que os pais dele chegavam do trabalho, o movimento no largo, a própria topologia do largo que até era bem favorável pois tinha pouco movimento, era recatado e os prédios tinham arcadas com colunas bem grossas e a disposição do estacionamento dos carros. Fiquei a saber quando é que ele levava os amigos para casa e as alturas em que vinha sozinho vindo lá das actividades dele. Foi custoso até porque levou-me bastante tempo a reunir tudo isto. Não se pode pensar que se vigia uma pessoa durante duas semanas e já se está pronto para avançar até porque eu tinha muitos dias ocupados com coisas minhas, muito mais importantes que este saloio. Por alturas do Natal de 1999, eu já tinha uma boa ideia do dia-a-dia do Gustavo. Era só uma questão de escolher o dia. Entretanto, ele continuava a gozar com o pessoal que não lhe agradava e até tinha desligado um pouco de mim mas eu estava completamente absorvido pela minha intenção. Já não lhe ligava nenhum. Tomei a decisão de que tinha tudo de ocorrer num dia em que ele regressava dos treinos pois ele chegava a casa perto das 20:30-20:45 e, a essa hora, o movimento nas ruas era praticamente nulo. Foi então que apareceu o momento ideal: iria haver um Benfica - Sporting para a Taça de Portugal numa 4ª feira, em finais de Janeiro de 2000 que, mais tarde, ficou famoso pela aquela história da SIC ter feito directos para o Estádio da Luz quase de minuto a minuto. Eu sabia que ele vinha sozinho, vinha com o saco de desporto onde guardava o equipamento e, mais importante, vinha cansado. Esperei por ele à porta do prédio. Quando ele estava já no passeio e perto, saí de baixo da ombreira da porta e avancei para ele. O Gustavo ficou surpreendido por me ver. Até disse "Tu por aqui?". Mas ficou ainda mais surpreendido pela minha atitude. Nem lhe respondi, simplesmente deitei-o ao chão com um soco em cheio na cara e, a partir daí, só parei quando me senti cansado. Até com o saco de desporto ele levou em cima. Mas, como já tinha dito, não pus a integridade em causa nem ataquei qualquer órgão mais sensível, pois isso teria sido cobardia pura. Só sei que deixei a cara dele bem vermelha, os braços e as pernas levaram para contar, ficou a sangrar da boca sem, no entanto, lhe ter partido algum dente, e um dos olhos dele ficou "meio corado". Em seguida, fui-me embora para casa e fiz um esforço bem grande para esquecer o que se tinha passado. Ele deve ter estranhado o motivo pelo qual eu esmurrei-o com luvas de látex nas mãos, que tinha comprado para levar para as aulas de TLB. Mais tarde ele percebeu que isso tinha sido para que não houvessem quaisquer resíduos da pele dele nas minhas mãos. Eu preparei-me para a resposta dele, mas isso já não me importava. Uma coisa muito importante que tinha aprendido era que ficava para a posteridade quem foi o primeiro a dar e ele tinha pago por tudo o que tinha dito e feito. Por isso, pouco me importava que ele tentasse responder na mesma moeda. Surpreendente foi o que se passou em seguida. Eu preparei-me para levar na boca dele mas o Gustavo não foi por aí. Ele, querendo fazer passar a imagem de pessoa correcta, foi fazer queixa de mim à bófia. Acontece que ele já era conhecido por eles por ser um monte de esterco ambulante e ninguém o levou a sério pois perceberam logo que alguém lhe tinha dado forte e feio como resposta a alguma atitude parva. Mas como era uma queixa, tiveram que a levar adiante até porque já tínhamos os dois 18 anos, eu acabados de fazer e ele feitos uns meses antes. Quando eu fui chamado à esquadra, é que foi giro. Às acusações dele, eu apenas disse, de mãos nos bolsos e encolhendo os ombros: "Não tenho nada a ver com isto". O Gustavo ficou colérico, a chamar-me mentiroso e aos gritos. E eu sempre calmo. Foi então que o Gustavo se enterrou à grande. Um dos polícias perguntou se alguém mais tinha presenciado o acto, ao que o Gustavo respondeu que não. Em seguida, pediram-me para ver as mãos à procura de vestígios de sangue ou marcas de luta. Como tinha usado as luvas, não havia nada para mostrar. Após um tempo, o Gustavo desistiu da queixa e foi-se embora. Foi então que um dos polícias, se virou para mim e disse: "Oiça, eu sei que você deu-lhe forte pois ele fez alguma daquelas e que ele mereceu bem, pois tem a mania de se armar em bom. Agora pergunto eu: como é que fez isto de modo a não ser apanhado?". Eu olhei muito sério para o homem e respondi-lhe "Não tenho nada a ver com isto". E fui-me embora. Mas o mais surpreendente foi o que se passou com os amigos dele e, especialmente, com a namorada. Pela primeira vez e, ironicamente, estando ele a ser sincero, ninguém acreditou nele. Ninguém acreditou que eu lhe tinha feito uma espera à porta da casa dele, em terreno estranho para mim. E tornou-se claro. Toda a gente me conhecia, todos sabiam bem a minha maneira de ser, logo ninguém aceitou que eu tivesse algo a ver com aquilo. Toda a gente pensou foi que se tratou de algum ajuste de contas com outros tipos lá do bairro dele com quem ele gostava de se armar em parvo. O mais espectacular foi a Sara ter-lhe dado com os pés. Chamou-lhe tudo, à frente dos amigos. Se ele não tinha vergonha, depois de me ter enxovalhado, de me andar a pôr as culpas das asneiras dele. Até dois estalos lhe espetou na cara. E, ao contrário dos bófias, ninguém achou que eu era o responsável pelo olho negro com que ele apareceu na escola na 6ª feira. O ano continuou e o Gustavo não tentou nada. Bem, ele até me evitava. E deixou de se meter com os outros. Um dia, a Sara passou por mim e disse-me: "Desculpa se alinhei nas porcarias que ele te fez e não tomei posição para o parar". Os amigos dele disseram-me cenas semelhantes e nunca mais se aproximaram de mim. Não por medo mas simplesmente para não me chatearem porque achavam que já chegava. Entretanto o 12º ano chegou ao fim e vim para a faculdade. Do Gustavo, nunca mais ouvi nem soube qualquer notícia. Apenas que ele nunca mais se aproximou de mim. Como podem ver, não fiz nada à mafioso. Apenas me limitei a corrigir uma atitude que achei muito lesiva para mim.
Todos estavam em silêncio a olhar para o João. Ninguém conseguiu dizer nada que reprovasse a atitude dele. No fundo, até lhe perdoavam.
- Lamento que tivesses que agir assim - disse o Paulo.
- Eu também - respondeu o João.
O silêncio perdurou mais um pouco, apenas interrompido pelo som do processador do computador a trabalhar. Estavam todos pensativos.
Entretanto, o Windows acabou de se instalar e o Jorge foi fazer as configurações finais. Estranhamente, ou talvez não, também umas ideias começaram a povoar a mente dele. Mas nada disse sobre isso.
- Bem, o sistema já está instalado. Agora é uma questão de instalares o software que cá havia - disse o Jorge para o Paulo - e, para o caso de faltar alguma coisa, deixo cá uns CDs com vário material.
- Muito obrigado pelo favor.
- De nada, podes sempre contar comigo - respondeu o Jorge sorrindo.
Levantaram-se todos e começaram a despedir-se.
- Obrigado pelo jeito que deste ao computador - disse o Padre Ferreira, apertando-lhe a mão - vamos precisar dele para preparar as actividades do próximo fim-de-semana e, se ele estivesse sem poder trabalhar, seria muito mau.
- Ora essa, não tem nada que agradecer. Até foi bom para descontrair a minha mente ter feito uma boa acção.
- Agora rapaz, não te deixes influenciar por ideias estranhas e age correctamente.
- Assim farei.
O Jorge despediu-se da D. Julieta e do casal. Em seguida, aproximou-se do João para de despedir dele. Este continuava em silêncio.
- Fizeste o que tinhas de fazer, não penses mais nisso.
- É o que tenho feito - respondeu - e tu, vê bem o que fazes agora. Não deixes que os teus sentimentos controlem os teus actos mas sim a tua razão é que o deve fazer, estás a ouvir?
- Estou.
Despediram-se e o Jorge saiu acompanhado do Paulo enquanto que cada um dos outros seguiu o seu caminho.
- São quase 11 da noite. Vens jantar lá a casa. Eu avisei a Joana que ias lá jantar por isso, não tens desculpa além de que eu a seguir dou-te boleia para casa.
- Que posso eu dizer se não aceitar o teu convite.
- Então, vamos andando que já se faz tarde.
Avançaram ambos para o carro do Paulo que estava estacionado a uns metros da Igreja.
E aquelas ideias que fervilhavam na sua cabeça, após ouvir a história do João, continuavam a produzir vários cenários, uns atrás dos outros...
Enquanto caminhavam pelo passeio, houve algo que chamou a atenção do Jorge. Era num panfleto que alguém tinha atirado para o chão. Apanhou-o para o pôr num Eco Ponto mas algumas das palavras impressas chamaram-lhe a atenção. Aproximou-se de uma montra para melhor ler o que estava escrito. Era publicidade duma agência de viagens. Falava duma promoção para ir assistir ao Grécia - Portugal para o apuramento para o Mundial de 2010 num voo charter e reparou no slogan que servia de mote ao anúncio: "Chegou a hora da vingança!". O Jorge sorriu.
O Jorge aproximou-se da porta principal da igreja e reparou que estava fechada. Lembrou-se então da porta que dava acesso à biblioteca e às salas de reunião e convívio que existiam nas traseiras. Ao mesmo tempo que ia caminhando, reparou nas luzes acesas através das janelas e na presença de alguns vultos. Com certeza que o Paulo não estava sozinho na igreja aquelas horas e devia estar acompanhado de outras pessoas.
Foi então que chegou ao pé da porta e bateu à campainha. Ouviu passos do outro lado e alguém a abrir o trinco da fechadura. Foi então que a porta se abriu e o Jorge reconheceu claramente as feições do seu velho amigo.
- Boa noite, Sr. Paulo. Cá estou eu conforme prometido.
- Jorge! Boa noite para ti também! - respondeu o Paulo com um grande sorriso na cara ao mesmo tempo que trocavam um abraço - então, estava a ver que nunca mais chegavas...
- O que queres que faça? O trânsito as estas horas ainda está infernal - respondeu o Jorge ao mesmo tempo que entrava no corredor e pendurava o casaco num cabide - e com a chuva fica tudo muito pior. Já sabes como são os condutores em Portugal.
- É verdade. Então, como foi o teu dia?
- Foi altamente surrealista. Aconteceu-me uma cena que, contada, ninguém acreditaria.
- Então, que se passou? - perguntou o Paulo com um ar enigmático.
- Já te conto. Agora, vamos lá tratar desses problemas informáticos. Que se passa com o computador?
- Está todo mamado - respondeu o Paulo enquanto abria a porta da biblioteca e deixava o Jorge passar à frente - ontem estive a trabalhar com ele na boa e hoje, quando o liguei, estava diferente. Tinha os atalhos todos alterados, não deixa aceder a nenhum programa, os menús estão todos inacessíveis e a desligar demora muito pouco tempo, como se fosse instantâneo, o que para um Windows é algo de anormal.
Entretanto, tinham entrado na biblioteca e o Jorge pode constatar quem eram as pessoas cuja sombra tinha visto pela janela ainda há pouco. Sentados à volta de uma mesa estavam o Padre Ferreira, pároco da Ajuda, o Miguel e a Diana, dois amigos do Jorge e do Paulo dos tempos do secundário que se tinham casado e moravam na Ajuda, a D. Julieta, uma senhora adorável na casa dos 60 anos, que era a responsável pela biblioteca e pelo ATL das crianças do infantário anexo à igreja e o João, outro velho amigo do Jorge e do Paulo que costumava ser animador do ATL aos fins-de-semana.
- Boa noite a todos - disse o Jorge de forma cordial ao mesmo tempo que cumprimentava cada um dos presentes pessoalmente - como estão?
- Boa noite, como vais rapaz? - respondeu o João sorrindo - tens andado desaparecido, ninguém te vê...
O Jorge soltou uma gargalhada.
- Então, deves julgar que sou como tu. Não sei se sabes mas ainda há quem tenha empregos com responsabilidade! - respondeu o Jorge piscando o olho ao mesmo tempo que apertava a mão ao Padre Ferreira e em seguida cumprimentava a D. Julieta.
- Sim, sim, és um trabalhador nato - retorquiu o João enquanto cruzava os braços em sinal de desafio.
- Sr. Padre, como vai essa saúde?
- Cá se vai andado, devagar, mas vai-se - respondeu alegremente.
- Isso é que é preciso. - O Jorge virou-se para o casal e perguntou - Então, e os pombinhos, como estão?
- Nós estamos bem, obrigado e tu, que contas? - perguntou a Diana quando trocavam um beijinho.
- O costume. Sabes como é, isto de um tipo andar numa consultora tem que se lhe diga... Sempre trabalho aos montes.
- Isso são desculpas dele. Na realidade ele faz nenhum o dia todo e depois anda-se a queixar pelos cantos! - disse o João interrompendo a conversa e piscando o olho aos outros.
- É, é mesmo assim - respondeu o Jorge sorrindo e abanando a cabeça - Então, qual é o computador que está a dar barraca? O Paulo falou-me por alto que o Windows está a comportar-se de modo estranho o que até não tem nada de estranho para um Windows mas, da forma como ele o descreveu, é mesmo anormal.
- É este aquí - disse o Paulo chegando-se para um computador de secretária - está a funcionar tal e qual como te contei.
- Deixa ver.
O Jorge sentou-se e olhou para o ecrã do monitor. De facto, havia mesmo algo que não batia certo. À primeira vista, parecia um Windows Vista perfeitamente normal mas apresentava umas diferenças. Reparava-se que no system tray, apenas estava o ícone do MSN Messenger e nos atalhos presentes no "desktop", estavam alguns que não faziam qualquer sentido num PC não ligado à Internet como o "My Network Places" que apenas aparece quando se está online. De resto, o comportamento dos menús era tal e qual o já descrito pelo Paulo: apenas o principal abria e não era se conseguia arrancar nenhum programa. Tentou ir ao "My Computer" e ver as propriedades da partição principal. Quando tentou arrancar o Scan-disk do Windows apareceu uma janela a avisar que tal operação não era possível pois estava um programa instalado que tinha essa funcionalidade específica e, como tal, tinha trancado o acesso ao Windows ao disco.
- Estava algum anti-virus instalado ou algum programa de monitorização do sistema? - perguntou o Jorge levantado a cabeça da altura do monitor e olhando para os restantes presentes.
- Tinha o Norton Anti-Virus e o Norton System Works - respondeu o Paulo fazendo um esforço para se lembrar no pormenor da versão, algo em que ele nunca reparava - e creio que era o 2007. Não, era o 2006. Pá, não tenho a certeza, era um deles, não me lembro bem de qual...
- Está bem.
O Jorge voltou a olhar para o ecrã. Tentou abrir os atalhos para umas directorias mas não conseguiu aceder aos seus conteúdos. Realmente, não havia muito mais a fazer. Nenhuma das funcionalidades do sistema operativo estava a responder e não se conseguia aceder a qualquer dos programas instalados, nem sequer ver o conteúdo do menu das aplicações.
- Bem, o que se passa com ele é bastante estranho e, francamente, não estou a ver outra solução viável que não seja formatar a partição onde está o Windows e reinstalar tudo de novo. Como os dados estão todos na partição partilhada não há qualquer problema e ficam a salvo. Eu podia tentar correr a consola de reparação que o CD de instalação do Windows tem mas acho que o resultado vai ser uma autêntica javardice. Os registo do sistema já estão todos alterados e o ou os erros que estão na origem deste problema, muito provavelmente, podem lá ficar dissimulados mas nada garante que, no futuro, isto não volte a acontecer.
- Bem - respondeu o Paulo - se é essa a melhor solução, força nisso. Tens contigo o que precisas para instalar o Windows de novo?
- Tenho. Trago sempre comigo CDs com software para várias eventualidades.
E em seguida, o Jorge abriu a sua pasta e retirou uma pequena bolsa com CDs e DVDs. Escolheu o que tinha etiquetado "Windows Vista Home" e retirou-o. Colocou-o no leitor de DVDs e reiniciou o computador. Alterou as configurações na BIOS para que o computador arrancasse do leitor de DVDs e, pouco depois, deu início ao processo de formatação da partição. Enquanto esperava que todo o processo chegasse ao fim, o Jorge chegou-se para trás na cadeira, levou a mão à testa e suspirou profundamente.
- Que tens? Pareces bastante cansado... - perguntou a Diana.
- Não é tanto cansaço, é outra coisa que me anda a pesar cá dentro - respondeu o Jorge, colocando as mão em cima da mesa.
- O que é? Problemas no trabalho? - perguntou o Miguel.
- Sim e não. Quer dizer, é no trabalho mas não directamente relacionado com ele.
- Então, que se passa rapaz? - perguntou o Paulo que entretanto tinha puxado duma cadeira e estava sentado ao lado do Jorge.
- Foi uma cena que aconteceu hoje lá no trabalho envolvendo o namorado duma amiga minha.
- E que cena é essa que te pôs com uma cara dessas? - perguntou o Miguel.
- A sério, não quero estragar a vossa noite a incomodar-vos os meus problemas - respondeu o Jorge ao mesmo tempo que a formatação do disco tinha terminado e a instalação do Windows estava no início.
- Não incomodas nada, ora essa. Então para que servem os amigos? - disse o Paulo tocando no ombro do amigo.
O Jorge olhou, primeiro para o Paulo e depois para os restantes, e sorriu.
- Bem - disse enquanto mudava a posição da cadeira, saindo da frente do computador e virando-se para todos os outros - o que aconteceu foi isto.
O Jorge contou tudo o que se tinha passado, desde o inicio, quando se reencontrou com a Andreia, passando pelo primeiro choque com o Cláudio e terminando com os acontecimentos daquele dia. Quando acabou a narrativa, imperava um silêncio na sala, como se se tratasse dum funeral e ninguém conseguisse falar sobre o que quer que fosse. O sentimento de indignação estava estampado no rosto de cada um e, por dentro, todos sentiam pena pelo Jorge.
- Francamente, não sei bem como vou resolver isto - disse o Jorge, abanando a cabeça - ela não acredita em mim. Mais, ela nem sequer me quer ouvir.
- Pois, é complicado quando a pessoa que se espera que seja imparcial não o é e pensa com o coração em vez de o fazer com a razão - afirmou o Miguel.
- Acho que não devias forçar o contacto com ela - disse a Diana - se, neste momento a rapariga não quer falar contigo, não vale a pena insistires porque o resultado que vais obter será ainda pior. Quanto mais tentas, mais ela te rejeita. Se, um dia, ela quiser falar contigo, ela fá-lo-á de livre vontade e não por tu andares atrás dela. Lembra-te que, para ela, tu és o culpado e está magoada contigo.
- Concordo, acho que devias deixar acalmar a poeira e ver o que ela vai fazer - acrescentou o Paulo.
- Vocês têm razão no que dizem, mas há outro aspecto que não pode ser esquecido. O Cláudio. Ele teve um conjunto de atitudes que me prejudicaram bastante. Além de que fez de mim parvo e divertiu-se à grande com toda esta situação. Já o estou a imaginar a rir-se de mim e da cara que fiz quando vi a fotografia dele com a cara esmurrada. Deve ter pensado: "Já me livrei deste palhaço!".
- E o que pretendes fazer em relação a isso? - perguntou a Diana.
- Fazê-lo pagar por tudo o que me fez! - respondeu o Jorge dando um salto da cadeira e avançando na direcção da Diana, abrindo os braços - não sou um otário que ando aqui à solta para ser enxovalhado e espezinhado pelos outros que fazem asneiras e não querem pagar por elas!
- Tens de ter cuidado com o que pensas - disse o Padre Ferreira - lembra-te que o ódio e a violência levam a lado nenhum, bem pelo contrário. Estás a pensar em arranjar uma luta com ele para te desforrares mas isso não é solução. Se, por esta situação, não és responsável, ao tomares a iniciativa com uma resposta violenta, estás a alinhar no jogo dele, tornas-te culpado aos olhos de todos, perdes toda a razão que tens e, mais importante que tudo, estás a baixar ao nível dele, algo que julgo não ser consistente com a tua natureza como homem e como pessoa.
- O senhor está a falar verdade - respondeu o Jorge, sentando-se novo na cadeira - mas isto não pode ficar assim. Quer dizer, quando nos fazem mal, encolhemos os ombros, viramos as costas e dizemos "As acções são dele, logo ele acabará por pagar um dia". E se esse dia nunca chegar ou chegar muito tarde quando já não fizer sentido? Assim, fui comido como parvo e não respondi.
- Sejamos sinceros. Como todo o respeito pelas suas ideias Sr. Padre, pelo que se passou, o Cláudio merecia levar uma tareia em cima. Quem tem a legitimidade para agir é quem é mais prejudicado. Só que a pessoa que foi mais prejudicada, não se apercebeu de nada e não vai tomar qualquer medida. Mas, concordo com o ponto de vista de que a violência gratuita apenas vai piorar a situação - disse o Paulo.
- Aí é que está o problema. Se eu chegar ao pé dele e lhe espetar um par de socos, embora possa, aparentemente, acertar contas entre nós os dois, fico muitíssimo mal visto pelas outras pessoas, especialmente por ela.
- Não necessariamente.
Todos olharam para quem tinha dado aquela resposta. Era o João. Desde o início da narrativa do Jorge ele permanecera em silêncio e imóvel, com uma cara muito séria, como se estivesse a pensar noutro assunto ao mesmo tempo que ouvia as palavras do amigo. E agora, dera aquela resposta.
De facto, o João estava mesmo a pensar noutra coisa. A situação descrita pelo Jorge fazia-lhe lembrar algo que lhe acontecera há oito anos atrás, ainda nos tempos do secundário.
João Emílio Fernando Bretes fora o nome que os pais lhe deram há 26 anos atrás. Um nome de recurso, diga-se já que toda a família estava convencida que era uma menina que vinha a caminho e tinham escolhido um nome a condizer: Sandra. Mas, para juntar ao facto de ter decidido nascer antes do tempo, com 8 meses de gestação, o que lhe deu o apelido de "apressado", decidiu ser um rapaz a aparecer e os pais, sem grande imaginação para uma solução de recurso, deram-lhe os nomes dos dois avôs. O João era daquelas pessoas de quem toda a gente gosta de estar ao pé. Por todas as escolas por onde passou até à faculdade e, depois, no seu emprego na Vodafone, era muito estimado por todos pois consideravam-no um bom amigo, alguém em quem se pode confiar em todos os momentos. No entanto, a vida nem sempre fora fácil. Houve alturas em que o João teve de lutar para conseguir atingir os seus objectivos e o facto de os pais serem pessoas que vieram de famílias muito simples e humildes que valorizam o esforço e a preserverança, moldaram nele um espírito muito forte de empenho e trabalho. A mãe era secretária de uma imobiliária no Lumiar e o pai era correspondente de vendas duma empresa de ferragens e materiais de construção sedeada na Baixa de Lisboa que, devido ao seu emprego, passava a maior parte da semana fora de casa, em viagem pelo norte do país em contacto com os clientes. O João sabia bem que a comida que tinha à mesa, a roupa que vestia e as demais coisas que possuía não caíam do céu. Sempre se habituou a respeitar e a fazer-se respeitado. Por isso, preferia estar rodeado de amigos que pensassem como ele e tivessem uma formação igual à dele. Mas isso não o impedia de participar em todas as brincadeiras em que os amigos se metiam, especialmente os do básico.
Os pais sempre fizeram tudo para nada lhe faltasse, especialmente a nível escolar. O João, tal como a maioria dos seus primos direitos, tinha uma boa capacidade para estudar e todas as possibilidades de tirar um curso superior e ficar bem no futuro. Sabendo disso, os pais optaram por, a seguir à conclusão da primária, o pôr numa escola particular situada nas proximidades do Estádio da Luz. Fora uma boa escolha. De facto, a mentalidade reinante nessa escola era que a formação como estudante e como pessoa era o mais importante no desenvolvimento dum jovem. Mas muito melhor que isso, foram os amigos que o João lá fez. A começar pela turma onde o colocaram. Aqueles tipos só sabiam fazer porcaria! Mas havia algo mais entre todos eles. Eles eram como uma família; não havia diferenças entre eles, apoiavam-se em todos os momentos e tiveram sempre um comportamento digno sempre que foram de viagem em representação da escola. Mas, infelizmente, houve uma alteração radical na vida do João. A empresa em que o pai trabalhava, estava a dar sinais de que ia fechar a curto prazo e, para garantir uma indemnização, o pai resolveu vir-se embora e iniciar um negócio por conta própria. Mas não foi nada fácil e houve necessidade de fazer cortes na despesa para poder compensar as alterações que advieram da mudança de emprego do pai. E uma dessas alterações foi a mudança de escola pois os pais deixaram de ter capacidade financeira para poder sustentar as mensalidades. E assim, o João transferiu-se para a Escola Secundária de Benfica onde fez os três anos do secundário. As diferenças entre as escolas eram enormes, a começar pela forma como os professores lidavam com os alunos e pelo próprio sistema da escola. A sorte do João foi que não havia rivalidade entre os alunos das duas escolas, logo a sua integração não fora difícil, bem pelo contrário. Afinal de contas, há pessoas decentes em todos os lugares e alí não era excepção. No entanto, ele não se separou dos outros amigos. Continuavam a encontrar-se como sempre e a fazer montes de coisas juntos. Como todo o empenho que punha em tudo o que faz, o João conseguiu concluir o 12º ano e entrar na Universidade Católica para o curso de Engenharia Electrotécnica, seguindo a especialização em Telecomunicações. E quando o concluiu, fez um estágio na Vodafone e por lá ficou, sendo o seu profissionalismo constantemente elogiado por todos. No entanto, nesta aparente existência digna, houve um episódio, passado no secundário, que o marcou. Episódio esse que veio de volta à sua memória ao ouvir o que se tinha passado com o Jorge.
- Que queres dizer com essa afirmação? - perguntou o Jorge, meio surpreendido.
- Estou a dizer que não é necessário que, ao optares por uma resposta "mais directa", digamos, percas a razão perante os outros, especialmente a tua amiga.
- Mas como é isso possível? Se toda a gente ver o que acontece, com muita razão que eu tenha, a imagem que fica é a de uma pessoa que agrediu outra.
- E se ninguém ver? - contrapôs o João.
Toda a gente ficou espantada com estas palavras e ficou a olhar ele.
- Tu dizes, e muito bem - disse, levantando-se da sua cadeira e pondo as mãos nos bolsos - que perderás toda a razão se te virem a bater nele. Mas e se não houver testemunhas?
- O que estás a sugerir é muito baixo - disse a Diana com uma cara de indignação.
- Antes do mais - continuou - um esclarecimento que creio ser necessário neste momento. Eu partilho, por inteiro, das ideias expressas pelo Padre Ferreira. Sou contra a violência e não julgo que ela seja a solução para problemas, sejam eles quais forem. No entanto, há alturas na vida em que somos obrigados, por motivos de força maior, a pôr de lado as nossas crenças, a nossa forma de ver as coisas e a tomar atitudes porque a isso somos obrigados.
«Tu, Jorge, estás a pagar pelas atitudes de uma pessoa que fez várias asneiras e não quer assumir a responsabilidade por elas pois ele sabe que o preço a pagar é demasiado elevado. E, como tal, para te calar e se ver livre de ti, contou a história à maneira dele e, infelizmente, foi levado a sério. Isso não significa que devas ficar quieto e parado com uma placa a dizer "otário" colada na testa e, muito menos, que não deixes de responder. A tua dignidade está em jogo e, mais que isso, uma questão entre vocês os dois sobre quem tem o direito de rebaixar quem e sair impune.
«Eu disse que não é necessário que tu percas a razão se lhe quiseres dar uma coça. Se calhar, não o devia ter feito. Mas agora, que falei, digo tudo até ao fim. Sabes qual é o princípio pelo qual funciona o sistema judicial dum estado de direito?
- É o princípio da presunção da inocência - respondeu o Jorge.
- Correcto. E o que isso quer dizer?
- Quer dizer que uma pessoa é inocente até prova em contrário.
- Correcto. Mas dito isso por outras palavras e de forma mais precisa, o que significa?
O Jorge olhou para o João e para os restantes e encolheu os ombros. Os outros também não perceberam bem onde é que o João queria chegar.
- O princípio da presunção da inocência diz claramente que uma acusação efectuada contra uma entidade por parte de outra, apenas é considerada efectiva e passível de punição adequada se essa acusação for sustentada por provas de inequívoca e inquestionável validade assegurada por uma entidade terceira totalmente inócua.
«Assim sendo, o Cláudio pode acusar-te de lhe teres batido porque ele arranjou testemunhas, falsas, mas testemunhas. Mas como é que ele o pode voltar a fazer se tu realmente lhe deres uma coça e não houver ninguém que presencie tal acto? É a palavra dele contra a tua e, segundo o princípio da presunção da inocência, não havendo testemunhas ou provas factuais que a suportem, não te pode acontecer nada apenas pela palavra dele. Tu nem precisas de negar a acusação. Basta que digas qualquer coisa do género: "Tenho nada a ver com isso". Não há provas, não há consequências.
- Mas espera aí - disse o Miguel, interrompendo a conversa - para que isso aconteça, tu estás a sugerir uma "espera". E isso não é nada dignificante.
- Depende da forma como é feita - respondeu o João - se ele apenas o fizer sozinho, sem a intervenção de terceiros, entenda-se "amigos", e lutar de forma civilizada, digamos, sem recurso a objectos de arremesso como pedras ou paus e não atingir partes mais sensíveis do corpo, como os órgãos genitais, a nuca, a base das costas, ou seja, fazendo apenas uso dos punhos e batendo onde faça mossa e dor mas onde não ponha a integridade física dele em questão, não há nada que lhe possa ser indicado como monstruoso ou, como dizes, pouco dignificante.
«Falas em "espera". Eu julgo que a melhor forma de tratar disto até seria fazê-lo em frente aos conhecidos dele. Mostrava coragem e respeito próprio. Mas isso poderia provocar outros efeitos secundários mais graves. Por exemplo, e como já foi dito, as pessoas presentes poderiam dizer, independentemente de estarem feitas com ele ou não, que se tratou de um acto de violência gratuita e isso não beneficiaria em nada a posição do Jorge. E, além disso, eles poderiam mesmo entrar na luta. Se ele o fizer sem intervenção ou testemunho de terceiros, não só restaura a posição dele como impede qualquer retaliação ou quebra de imagem perante outras pessoas.
- Tu percebes bastante disto - disse o Paulo, com ar bastante surpreendido. A resposta do João deixou toda a gente boquiaberta a olhar para ele.
- Eu sei. É que já tive necessidade de o pôr em prática.
- Estás a dizer que optaste por esta táctica de actuação no passado? - perguntou o Miguel com espanto.
- Sim. Como já disse, há alturas na vida em que somos obrigados a agir de forma diferente à nossa maneira de ser porque as circunstâncias assim o obrigam. No passado, tive um problema grave em mãos e a única forma que encontrei para resolvê-lo foi esta. A razão pela qual vocês e o resto do pessoal nunca souberam foi, primeiro, porque passou-se no secundário e, como estávamos separados, não vos chegou aos ouvidos e, segundo, porque achei que não era nada de que me orgulhasse particularmente para andar a fazer publicidade ou a gabar-me por aí. Foi algo que teve que ser feito, no momento e timing certos.
- Que problema foi esse que te atormentou a esse ponto? - perguntou o Jorge.
Toda a gente estava especada a olhar para o João. A face dele denotava um certo nervoso e apreensão por ir remexer em algo que não lhe trazia boas recordações. Ele juntou as mãos e começou a contar.
- Quando entrei para a ESB, havia uma certa hierarquia montada lá dentro que já vinha desde os tempos do 9º ano. E, como em todo o lado, havia pessoal de jeito, que gostava de ter posição mas tratava os outros com respeito e havia daqueles que adoravam maltratar os outros. E quando digo maltratar, não me refiro a violência física mas sim a atitudes discriminatórias. Gozavam-se com os que eram gordos, com os que estudavam, com os que praticavam algum tipo de desporto, com os que eram do clube diferente. Enfim, tudo servia. Um dos tipos que gostava de se armar desta forma era um caramelo chamado Gustavo Valente, uma autêntica peça. Ele praticava andebol no Sporting, andava com uma miúda do Calhariz chamada Sara, se não me engano, que andava sempre atrás dele e tinha como que uma legião de seguidores, chamemos-lhe assim, que alinhavam em todas as tretas que ele arranjava. Nunca soube bem o que ele tinha de tão especial para ter tanta gente atrás. Acho que deviam achar piada ao estilo dele: um tipo que pertencia a um grande clube, com uma miúda gira ao lado e a dar piadinhas para o ar e a achar-se muito engraçado por se meter com os outros. Ele não se meteu logo comigo. Passei todo o 10º ano com normalidade e a assistir constantemente às cenas que ele arranjava por lá com outras pessoas. No 11º ano é que as coisas mudaram. Tudo começou quando um dia ele me viu na biblioteca a ler um livro sobre a 2ª Guerra Mundial. Ora, todos vocês sabem que eu gosto muito de ler e tenho um gosto especial por história universal. Acontece que eu estava no 1º agrupamento e lá não há qualquer cadeira de História. Ele topou e meteu-se comigo. Perguntou-me se a saudação nazi servia para estudar os Maias de Português ou para calcular as equações de Matemática. Eu limitei-me a responder que estava a ler por gosto e para aprender mais umas coisas para aumentar a minha cultura geral. Ele desatou-se a rir e chamou-me "aprendiz de SS". Fiquei a ferver por dentro mas fiz acabei a fazer de conta que era nada e continuei a minha vida. O problema foi que ele fixou-me e passou a meter-se comigo todas as vezes que me via. E chamava-me todos os nomes que lhe vinham à cabeça. Um dia até me chamou "lampião da suástica", pois não era segredo para ninguém que eu tinha, e tenho, interesse pelo Benfica. Ao fim de um tempo, eu já não o suportava. E o pior nem era ele chamar-me coisas, era mesmo ver o "séquito" que vinha com ele a fazer daquilo uma autêntica paródia. O resto do pessoal dizia para eu não ligar e fazer de conta que ele não existia e seguir a minha vida com calma. Como acontece com todas as pessoas que me conhecem, sabem que sou uma pessoa correcta, sincera, honesta e simples e lá não foi diferente. Eu continuava a ler os meus livros e a manter-me no meu cantinho, sem me meter com os outros de forma incorrecta. Logo, eu tinha do meu lado toda a gente que também era gozada por ele e fazia tudo para o ignorar ao máximo. Acontece que um dia, a minha paciência esgotou-se. Foi em Maio de 1999. Eu fazia parte da equipa de voleibol, como se devem recordar, e tirámos umas fotos para serem espalhadas pela escola para anunciar os nossos jogos para que o pessoal viesse assisti-los. Era uma prática comum já que todas as outras equipas, como a de futebol e a de basquetebol, faziam também. Acontece que o Gustavo apanhou uma dessas fotos de equipa, pegou numa caneta vermelha e fez um círculo à volta da minha figura na fotografia e escreveu por cima "O filho da puta nazi da ESB. Vamos saudá-lo. Heil!" e colocou-a cá fora, pendurada numa das árvores. Eu fiquei a ferver. Eu só tinha vontade era de chegar ao pé dele e desancá-lo à pedrada, o que não era nada difícil dado que a escola estava em obras e tinham levantado a calçada para arranjos. Porém, eu tive bons amigos lá que me acalmaram os nervos. Disseram-me que não valia a pena eu arranjar molho por causa daquilo, que só os anormais é que iam na conversa dele e que todas as pessoas decentes da ESB não alinhavam naquilo. Eu acedi. Mas havia uma cena que não podia ficar impune: ele chamou-me filho da puta e isso tinha que ser resolvido. Hoje, dou graças por me terem segurado na altura porque se eu tivesse atirado alguma pedra da calçada à cabeça dele, não só me tinha lixado à grande como tinha armado uma autêntica batalha campal pois os amigos dele viriam contra mim e o resto do pessoal punha-se ao meu lado contra eles. Eu soube logo que aquilo tinha de ser resolvido a dois, sem interferências. Mas como? Foi então que eu ouvi uma conversa em casa entre os meus pais e a solução caiu mesmo à frente dos meus olhos. O meu pai falou dum tipo que tinha dado uma tareia a outro que o tinha enganado e gozado e tinham ido a tribunal mas não aconteceu nada porque não houvera testemunhas nem provas físicas que ligassem os dois homens pelo incidente. Foi então que pensei em algo semelhante. Mas não era algo que se fizesse assim, do pé para a mão. Requeria paciência, calma e estudar muito bem o Gustavo. A minha primeira preocupação era descobrir onde ele morava o que não foi nada difícil. Um dia segui-o, com os amigos dele todos atrás e fiquei a saber que ele morava num prédio situado num largo ao pé do Centro Comercial Colombo. Agora, era uma questão de saber bem o horário dele para o poder esperar numa hora e em circunstâncias que me fossem favoráveis. Descobri o horário dos treinos de andebol, as horas em que levava a namorada para casa, quando é que os pais dele chegavam do trabalho, o movimento no largo, a própria topologia do largo que até era bem favorável pois tinha pouco movimento, era recatado e os prédios tinham arcadas com colunas bem grossas e a disposição do estacionamento dos carros. Fiquei a saber quando é que ele levava os amigos para casa e as alturas em que vinha sozinho vindo lá das actividades dele. Foi custoso até porque levou-me bastante tempo a reunir tudo isto. Não se pode pensar que se vigia uma pessoa durante duas semanas e já se está pronto para avançar até porque eu tinha muitos dias ocupados com coisas minhas, muito mais importantes que este saloio. Por alturas do Natal de 1999, eu já tinha uma boa ideia do dia-a-dia do Gustavo. Era só uma questão de escolher o dia. Entretanto, ele continuava a gozar com o pessoal que não lhe agradava e até tinha desligado um pouco de mim mas eu estava completamente absorvido pela minha intenção. Já não lhe ligava nenhum. Tomei a decisão de que tinha tudo de ocorrer num dia em que ele regressava dos treinos pois ele chegava a casa perto das 20:30-20:45 e, a essa hora, o movimento nas ruas era praticamente nulo. Foi então que apareceu o momento ideal: iria haver um Benfica - Sporting para a Taça de Portugal numa 4ª feira, em finais de Janeiro de 2000 que, mais tarde, ficou famoso pela aquela história da SIC ter feito directos para o Estádio da Luz quase de minuto a minuto. Eu sabia que ele vinha sozinho, vinha com o saco de desporto onde guardava o equipamento e, mais importante, vinha cansado. Esperei por ele à porta do prédio. Quando ele estava já no passeio e perto, saí de baixo da ombreira da porta e avancei para ele. O Gustavo ficou surpreendido por me ver. Até disse "Tu por aqui?". Mas ficou ainda mais surpreendido pela minha atitude. Nem lhe respondi, simplesmente deitei-o ao chão com um soco em cheio na cara e, a partir daí, só parei quando me senti cansado. Até com o saco de desporto ele levou em cima. Mas, como já tinha dito, não pus a integridade em causa nem ataquei qualquer órgão mais sensível, pois isso teria sido cobardia pura. Só sei que deixei a cara dele bem vermelha, os braços e as pernas levaram para contar, ficou a sangrar da boca sem, no entanto, lhe ter partido algum dente, e um dos olhos dele ficou "meio corado". Em seguida, fui-me embora para casa e fiz um esforço bem grande para esquecer o que se tinha passado. Ele deve ter estranhado o motivo pelo qual eu esmurrei-o com luvas de látex nas mãos, que tinha comprado para levar para as aulas de TLB. Mais tarde ele percebeu que isso tinha sido para que não houvessem quaisquer resíduos da pele dele nas minhas mãos. Eu preparei-me para a resposta dele, mas isso já não me importava. Uma coisa muito importante que tinha aprendido era que ficava para a posteridade quem foi o primeiro a dar e ele tinha pago por tudo o que tinha dito e feito. Por isso, pouco me importava que ele tentasse responder na mesma moeda. Surpreendente foi o que se passou em seguida. Eu preparei-me para levar na boca dele mas o Gustavo não foi por aí. Ele, querendo fazer passar a imagem de pessoa correcta, foi fazer queixa de mim à bófia. Acontece que ele já era conhecido por eles por ser um monte de esterco ambulante e ninguém o levou a sério pois perceberam logo que alguém lhe tinha dado forte e feio como resposta a alguma atitude parva. Mas como era uma queixa, tiveram que a levar adiante até porque já tínhamos os dois 18 anos, eu acabados de fazer e ele feitos uns meses antes. Quando eu fui chamado à esquadra, é que foi giro. Às acusações dele, eu apenas disse, de mãos nos bolsos e encolhendo os ombros: "Não tenho nada a ver com isto". O Gustavo ficou colérico, a chamar-me mentiroso e aos gritos. E eu sempre calmo. Foi então que o Gustavo se enterrou à grande. Um dos polícias perguntou se alguém mais tinha presenciado o acto, ao que o Gustavo respondeu que não. Em seguida, pediram-me para ver as mãos à procura de vestígios de sangue ou marcas de luta. Como tinha usado as luvas, não havia nada para mostrar. Após um tempo, o Gustavo desistiu da queixa e foi-se embora. Foi então que um dos polícias, se virou para mim e disse: "Oiça, eu sei que você deu-lhe forte pois ele fez alguma daquelas e que ele mereceu bem, pois tem a mania de se armar em bom. Agora pergunto eu: como é que fez isto de modo a não ser apanhado?". Eu olhei muito sério para o homem e respondi-lhe "Não tenho nada a ver com isto". E fui-me embora. Mas o mais surpreendente foi o que se passou com os amigos dele e, especialmente, com a namorada. Pela primeira vez e, ironicamente, estando ele a ser sincero, ninguém acreditou nele. Ninguém acreditou que eu lhe tinha feito uma espera à porta da casa dele, em terreno estranho para mim. E tornou-se claro. Toda a gente me conhecia, todos sabiam bem a minha maneira de ser, logo ninguém aceitou que eu tivesse algo a ver com aquilo. Toda a gente pensou foi que se tratou de algum ajuste de contas com outros tipos lá do bairro dele com quem ele gostava de se armar em parvo. O mais espectacular foi a Sara ter-lhe dado com os pés. Chamou-lhe tudo, à frente dos amigos. Se ele não tinha vergonha, depois de me ter enxovalhado, de me andar a pôr as culpas das asneiras dele. Até dois estalos lhe espetou na cara. E, ao contrário dos bófias, ninguém achou que eu era o responsável pelo olho negro com que ele apareceu na escola na 6ª feira. O ano continuou e o Gustavo não tentou nada. Bem, ele até me evitava. E deixou de se meter com os outros. Um dia, a Sara passou por mim e disse-me: "Desculpa se alinhei nas porcarias que ele te fez e não tomei posição para o parar". Os amigos dele disseram-me cenas semelhantes e nunca mais se aproximaram de mim. Não por medo mas simplesmente para não me chatearem porque achavam que já chegava. Entretanto o 12º ano chegou ao fim e vim para a faculdade. Do Gustavo, nunca mais ouvi nem soube qualquer notícia. Apenas que ele nunca mais se aproximou de mim. Como podem ver, não fiz nada à mafioso. Apenas me limitei a corrigir uma atitude que achei muito lesiva para mim.
Todos estavam em silêncio a olhar para o João. Ninguém conseguiu dizer nada que reprovasse a atitude dele. No fundo, até lhe perdoavam.
- Lamento que tivesses que agir assim - disse o Paulo.
- Eu também - respondeu o João.
O silêncio perdurou mais um pouco, apenas interrompido pelo som do processador do computador a trabalhar. Estavam todos pensativos.
Entretanto, o Windows acabou de se instalar e o Jorge foi fazer as configurações finais. Estranhamente, ou talvez não, também umas ideias começaram a povoar a mente dele. Mas nada disse sobre isso.
- Bem, o sistema já está instalado. Agora é uma questão de instalares o software que cá havia - disse o Jorge para o Paulo - e, para o caso de faltar alguma coisa, deixo cá uns CDs com vário material.
- Muito obrigado pelo favor.
- De nada, podes sempre contar comigo - respondeu o Jorge sorrindo.
Levantaram-se todos e começaram a despedir-se.
- Obrigado pelo jeito que deste ao computador - disse o Padre Ferreira, apertando-lhe a mão - vamos precisar dele para preparar as actividades do próximo fim-de-semana e, se ele estivesse sem poder trabalhar, seria muito mau.
- Ora essa, não tem nada que agradecer. Até foi bom para descontrair a minha mente ter feito uma boa acção.
- Agora rapaz, não te deixes influenciar por ideias estranhas e age correctamente.
- Assim farei.
O Jorge despediu-se da D. Julieta e do casal. Em seguida, aproximou-se do João para de despedir dele. Este continuava em silêncio.
- Fizeste o que tinhas de fazer, não penses mais nisso.
- É o que tenho feito - respondeu - e tu, vê bem o que fazes agora. Não deixes que os teus sentimentos controlem os teus actos mas sim a tua razão é que o deve fazer, estás a ouvir?
- Estou.
Despediram-se e o Jorge saiu acompanhado do Paulo enquanto que cada um dos outros seguiu o seu caminho.
- São quase 11 da noite. Vens jantar lá a casa. Eu avisei a Joana que ias lá jantar por isso, não tens desculpa além de que eu a seguir dou-te boleia para casa.
- Que posso eu dizer se não aceitar o teu convite.
- Então, vamos andando que já se faz tarde.
Avançaram ambos para o carro do Paulo que estava estacionado a uns metros da Igreja.
E aquelas ideias que fervilhavam na sua cabeça, após ouvir a história do João, continuavam a produzir vários cenários, uns atrás dos outros...
Enquanto caminhavam pelo passeio, houve algo que chamou a atenção do Jorge. Era num panfleto que alguém tinha atirado para o chão. Apanhou-o para o pôr num Eco Ponto mas algumas das palavras impressas chamaram-lhe a atenção. Aproximou-se de uma montra para melhor ler o que estava escrito. Era publicidade duma agência de viagens. Falava duma promoção para ir assistir ao Grécia - Portugal para o apuramento para o Mundial de 2010 num voo charter e reparou no slogan que servia de mote ao anúncio: "Chegou a hora da vingança!". O Jorge sorriu.